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São João de Deus

 

Aires A. Nascimento, nosso prezado amigo, acaba de publicar um livro sobre uma personagem fascinante: João Cidade, mais conhecido por São João de Deus. Nesta biografia retirou-lhe tudo aquilo que a hagiografia foi acrescentando ao longo dos séculos, para descobrir o homem e a obra do patrono dos médicos, enfermeiros, assistentes formais e informais, em suma de todos os que se dedicam a cuidar de quem sofre e carece de ajuda. Com a sabedoria que lhe é reconhecida, ao longo de 136 páginas, com abundantes notas de rodapé, uma detalhada cronologia, e seis cartas elucida-nos sobre cada passo da vida de João Cidade. Muitas outras curiosidades são explicadas, como a célebre sigla da sua assinatura Yfo, interpretada como "João feito tudo para todos" (yoannes factus omnia omnibus, em latim), ou a razão da adopção da Regra de Sanho Agostinho pelos irmãos hospitaleiros. As Edições Colibri estão de parabéns pelo esmero posto nesta edição, que contou com o apoio da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Sem pretendermos fazer um resumo de obra, cuja leitura recomendamos, não deixamos de registar algumas notas sobre a biografia de João Cidade, a Ordem que os seus seguidores criaram, a sua presença em Portugal, nomeadamente na freguesia de Alvalade. Um santo cuja vida e obra continua entre nós pouco divulgada, e que Aires Augusto Nascimento deu agora um importante contributo para o seu conhecimento.

S. João de Deus, Murillo (c.1672)

O Homem

João Cidade, nome de baptismo nasceu, segundo a tradição no dia 8 de Março de 1495, em Montemor-o-Novo. Consta que ainda criança foi levado por um clérigo mendicante para Oropesa, provincia de Toledo. Diz-se que a sua mãe morreu de desgosto e o pai, fez-se frade franciscano no Convento de Exobregas (Lisboa). Em Oropesa foi posto a cuidar de rebanhos e terá aprendido as primeiras letras. Em 1523 alistou-se na companhia militar do conde de Oropesa, no exercito de Carlos V que combatia Francisco I, rei de França. Revelou todavia um militar pouco zelozo, e acaba expulso. Regressa a Oropesa e novamente em 1532, alista-se agora nos mosqueteiros espanhóis que às ordens de Carlos V combatiam as tropas otomanas de Solimão II que haviam invadido a Europa e cercado Viena de Austria. Finda a expedição militar regressa a Espanha pela Galiza, visita Santiago de Compostela (1533) e daqui parte para Montemor-o-Novo. Com a familia desfeita e sem rumo na vida, segue para Aiamonte e Sevilha. Em 1535 está em Ceuta a trabalhar na recuperação das muralhas da fortaleza. É em Ceuta confronta pessoas que como ele, andam perdidos na vida. Em 1538 decide regressar à Europa, por Gibraltar. Nesta atravessia por pouco não morreu no naufrágio. Para se sustentar e amealhar algum dinheiro, terá trabalhado como recoveiro, recolheu e vendeu livros e estampas. Adquiriu alguma experiência neste oficio, ao ponto de estabelecer em Granada, junto a uma das suas portas da cidade uma tenda de livros.

No dia de S. Sebastião, em 1538, deu-se o acontecimento que vai mudar radicalmente a sua vida. Na ermida dos martires em Granada, Juan de Ávila, mestre em teologia, no sermão que ali fez afirma que um cristão devia servir o próximo ao serviço de Deus, mesmo que fosse necessário padecer de mil mortes. Estas palavras tocaram-no tão profundamente que o levou a desfazer-se de tudo o que possuia, e a assumir um comportamento semelhante a um louco. Mal dormido e alimentado foi internado no Hospital dos loucos da cidade.

A Obra

A dolorosa experiência no hospital como louco despertou-o para a forma brutal como eram acolhidos os doentes, nomeadamente os loucos. Estava nas suas mãos contribuir para melhorar a "hospitalidade" que era concedida aos doentes. A sua dedicação, em particular aos loucos, comove todos os que o observam. Andava pelas ruas a dar amparo aos marginalizados, os desprezados da sociedade, como os loucos, paraliticos, mancos, leprosos, tinhosos, vadios ou as prostitutas. Não importava a condição, estado, idade ou a religião. Eram pessoas e como irmãos os trata e acolhia. Na memória colectiva ficou a imagem de João Cidade a carregar aos ombros os doentes para os levar ao Hospital Real de Granada.O número dos que o procuravam ou ele recolhia não parou de aumentar, e a ninguém negava apoio. Pedia esmolas, recolhia lenha nos montes para vender para ajudar que precisava. Era um pobre entre pobres.

Para os loucos tinha uma atenção particular. Ao saber que em Guadalupe os frades Jerónimos os tratam, em 1539 foi para lá que se dirigiu. Queria conhecer o que outros faziam para melhor poder socorrer os que acudia. A sua vontade de servir o próximo não tinha limites. Na sua mente impos-se a ideia de criar em Granada um novo hospital, onde cada enfermo tivesse a sua cama, recebe-se a atenção devida e fosse tratado segundo a doença que padecia.

João Cidade pedindo esmola para os enfermos. Pintura na sede da Ordem em Lisboa.

A partir de 1540, procurou apoios e insistia sem desesperança na sua construção. Um hospital, como refere Aires Augusto de Nascimento, daria particular atenção aos doentes mais abandonados, os loucos. João Cidade conseguiu para o seu início importantes apoios, como o do bisneto do expulso rei muçulmano de Granada, de gente nobre e abastada e a protecção o rei Filipe II, garantes de uma obra de hospitalização moderna. Quatro anos depois começaram as obras. Não se ficou por Granada, visitou outros hospitais de Espanha, identificou necessidades e a todos procurou apoiar. Conta-se que salvou uma pessoa de se afogar no rio (1548), salvou doentes que estavam em risco de morrer num incêndio que se declarou no Real Hospital de Granada (1549). Muitas são as histórias que com a mesma intenção lhes são atribuidas. Quando faleceu em 1550, as obras ainda não estavam concluídas. Pouco importou, outros a prosseguiram e a irradiaram.

Ramírez Fuenleal (1490-1547), bispo de Tui e patrono do Real Hospital de Granada, em 1540, impôs-lhe uma mudança de nome dada a sua dedicação a auxiliar os desamparados: João de Deus (Juan de Dios).

S. João de Deus Salva os Doentes, Manuel Gómez-Moreno González (1880)

A Obra dos Seguidores

O seu exemplo de vida frutificou. Em breve os seu seguidores obtivarem um regulamento canónico, tendo sede no Hospital de S. Calibita, em Roma (1571). Em 1586 passaram à categoria de Ordem Hospitaleira São João de Deus, . A beatificação ocorreu em 1630 e canonização em 1690. Em Espanha, Itália e Portugal e depois por dezenas de países a Ordem difundiu-se e o exemplo de João Cidade continuou a frutificar.

Em Portugal, em 1580, no castelo de S. Jorge instituiram um hospital militar, mas só em 1606 a Ordem se estabeleceu em Portugal. Em Montemor-o-Novo foi criado em oratório do santo, e em 1625 começou a construção de um convento e hospital, na Rua Verde, no local onde morava o pai de João Cidade. Em 1674, o Hospital de Santo André que era da Misericórdia foi entregue à Ordem, mas em 1834 voltou à Misericódia.

A romã é o emblema de S. joão de Deus e Escudo da Ordem. "É símbolo da vida e de serviço aos cuidados dos doentes: a cor é sanguínea, as sementes são múltiplas e engastadas em película que lhe dá unidade; coroada no topo e encimada por uma cruz bem pode ser como fruto da vitória da vida na realização da obra caritativa, em grupo unido contra a doença do corpo e da mente", Aires Augusto Nascimento, p.92. Baixo relevo na Igreja de S. João de Deus, Lisboa.

Aquando da implantação da Republica (1910), eram os irmãos de S. João de Deus quem tomava conta do Hospital de Rilhafoles (depois Miguel Bombarda). Afonso Costa, ministro da Justiça e dos Cultos, quis certificar-se do trabalho desenvolvido no hospital para poder assinar o decreto de expulsão desta Ordem, e foi pessoalmente visitar o Hospital. Ao entrar na Enfermaria foi reconhecido por um doente que tinha sido seu colega em Coimbra que lhe perguntou: "Olha o Costa? Também foste apanhado?". O Ministro virou as costas e não assinou o decreto. O doente era o filho de António José Viale, que fora preceptor dos Infantes e primeiro Director do Curso Superior de Letras. Um episódio que nos foi referido por Aires Augusto Nascimento.

Em 1950,em Montemor começou a construção do Hospital Infantil S. João de Deus, inaugurado em 1966. Os irmãos hospitaleiros em 1947 foram para o Brasil e em 2004 para Timor. A Ordem em 2021 possuia 8 estabelecimentos no país.

São João de Deus em Alvalade e Arredores

- Capela de S. João de Deus no Hospital Júlio de Matos. Fundada em 1942, onde se encontra uma estátua do santo trazida do antigo Hospital Miguel Bombarda.

- Igreja de S. João de Deus. (Praça de Londres, Freg. São João de Deus). Construída em 1952, segundo um projecto do arquitecto António Lino, esculturas de Leopolde de Almeida e Soares Branco, cerâmicas de Jorge Barradas e pinturas de Domingos Rebelo, autor do tríptico. A Igreja foi inaugurada a 8 de Março de 1953, no mesmo em que foi inaugurada também a Igreja dedicada a este santo em Montemor-o-Novo, junto ao hospital Infantil da Ordem. A paróquia foi igualmente constituida neste ano.

Tríptico de Domingos Rebelo, narrando a história de João Cidade

- Bairro de Habitações Económicas São João de Deus (Bairro das Estacas). Foi projectado pelos arquitectos Ruy Jervis d`Athouguia , Sebastião Formosinho Sanches e Gonçalo Ribeiro Telles (paisagismo) (1949/1955).

- Ordem de São João de Deus (Rua São Tomás de Aquino, Freg. de S. Domingos de Benfica). Em 1990 foi colocada a primeira pedra do Centro Social e Cultural de S. João de Deus, onde hoje estão instalados os irmãos da Ordem, a sede do Instituto e a Clínica com o mesmo nome. A Fundação foi criada em 2006.

Capela no edificio da Ordem em Lisboa (pormenor)

- Clínica de São João de Deus ( Rua Afonso Lopes Vieira, Alvalade). Fundada em 1969

- Farmácia São João de Deus (Rua Pedro Ivo, Alvalade).

- Exposição "O Tempo das Imagens IV" do Centro Português de Serigrafia. BN Portugal, 14 Fev - 6 Maio de 2023

"Incluir" assim de chama um album com 10 obras de artistas residentes na Casa de Saúde do Telhal, um estabelecimento da Ordem de S. João de Deus, na área da saúde mental fundado em 1893. Artistas: Alfredo Mineiro, Paulo Gomes, Luís Raposo, Francisco Gueifão, Vitor Teixeira, Pedro Nunes, Pedro Cruz, Pedro Coelho, Pedro Pico e Nelson Monteiro Dente.

 

Aires A. Nascimento

Professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Grande-Oficial da Ordem de Sant`Iago de Espada (26 Janeuiro de 2023)

Nota biobliográfica

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